quarta-feira, 4 de agosto de 2010

PERFUME


Finalmente ela retornava a casa. Subiu lentamente os degraus da entrada buscando extrair cada detalhe perdido em seus cinco anos de ausência. Observou a vizinhança, notou os tijolos descascados, cachorros desconhecidos e toda novidade contribuía para sua certeza de recomeço. Parou sobre o tapete de entrada que lhe recepcionava: “Bem Vinda!”. Girou a maçaneta, tirou os sapatos e pisou delicadamente no carpete. Adentrou. Aromas de naftalina e mofo lhe eram essências mágicas naquele momento. Cheirou seu frasco de perfume que trazia sempre consigo e borrifou por toda a sala. Ela e seu perfume! Único companheiro que tivera durante seu retiro. Seu lar, sua vida recuperada, sem loucuras e devaneios. Não mais veria a menina que lhe convenceram, através de “terapias” diversas, não existir. Agora eram ela e seu perfume. Seu perfume tão cobiçado por todas as suas “amigas”. Mas pertencia a ela – só a ela, só dela! Quem teria mantido arrumada a casa? Já não se lembrava mais. Mas tinha a memória da paineira plantada por seu pai pouco antes de sua morte quando ela era ainda pequena; a morte do pai, a revolta da mãe que a culpava e a machucava eram agora lembranças sem peso. Afinal lhe garantiram que sua mãe a amava também. Mas e o perfume? Disseram-lhe que foi um acidente. Mas então por que tanto ódio? Como pode uma mãe queimar sua própria filha por ter derramado seu frasco de perfume? Definitivamente era uma mulher perturbada, diziam-lhe. Mas então não há menina? Aquela outra que espalhou pelo chão todo o perfume? Definitivamente não! Tudo isso agora era passado. Era seu momento de felicidade. Abriu a cortina da sala e lá fora estava ela. Paineira adulta, carregada de cabaças marrons explodindo em algodões que seu pai lhe afirmava serem tão brancos como o doce que ele lhe comprava na infância. Aprazia-se desse instante perfeito, sutil quando um barulho de vidro quebrando vindo do quarto roubou-lhe a atenção. Havia mais alguém na casa. Quem seria? Dirigiu-se ao quarto e para sua surpresa diante de si encontrava-se postada a menina. Impossível! Ela não existia... Mas seu olhar irônico era tão real! Sim, a menina sempre estivera ali na sua ausência. Claro, era ela quem mantinha limpa a casa. Por que sorria? Como se pareciam. O mesmo cabelo escuro cacheado, o mesmo corpo magro e quase o mesmo sorriso somente diferenciado pelo escárnio da menina. Teriam confundido as duas? Responsabilizado a menina errada? Não, ninguém a tinha visto. Agora ela compreendia que duvidavam de sua palavra não porque mentia, mas porque não encontraram a menina; ela havia se escondido sob a cama. “Deveriam tê-la levado e não a mim!”. Diante do toucador a menina se penteava e encimado na cômoda, cacos de vidro que não retinham mais a deliciosa fragrância. Ela precisava que alguém visse a menina. Precisava provar sua inocência. Num rompante segurou-lhe firmemente o braço frágil, como sua mãe fazia consigo. Não podia deixar que a menina escapasse, precisava levá-la dali. Por sua vez, a menina gritava-lhe que não era possível, que não daria certo, mas arrastada foi sendo retirada para fora da casa e com dificuldade pela resistência da menina foi rompendo os degraus até a calçada. Pronto! Ela estaria salva. Um homem que parecia de outra época, sentado num banquinho enrolava um cigarro de palha. Seria fácil. Mostrar-lhe-ia a menina e todos acreditariam nela! O homem ao vê-la sorriu. Um sorriso doce de alguém que a conhecia, que se lembrava dela, que fazia pipas para ela. Ela hesitou e como que lhe adivinhando a dúvida quis confirmar-lhe: - Sou eu, Messias, não me reconhece? – Claro, ela o reconhecia – mas o que havia de errado? Reconhecia seu olhar azul-petróleo, seu queixo prógnato, mas era só. Messias tinha menos de quarenta anos e aquele homem com sua cabeleira branca, sulcos profundos no rosto e desequilibrado no banco pela escoliose acentuada, aparentava não menos de noventa. Não compreendia. Que dimensão era essa que carecia de sentido? E ela olhava para ele e olhava para a menina e novamente para ele e para a menina que a avisava que não adiantaria. E como que compreendesse num vislumbre o significado de sua existência, soube que não ficara somente cinco anos no sanatório, mas uma vida inteira. Era mesmo o Messias e ele não viu a menina. Nunca ninguém a viu. Luciana MS Arraes - 04-08-10 (ilustração de Flávio Beicker-2001)

Um comentário:

  1. Gostei muito do texto!!! Muito lindo e profundo. Me comoveu bastante. Um grande Beijo!

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